"Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da
presença das coisas”.
( Sophia de Mello Breyner Andresen )
Por que razão escolhi ler e comentar o conto “Homero”?...Fiz esta pergunta a mim mesma várias vezes...foi uma escolha fortuita? Não sei bem...talvez me tenha atraído o facto de a palavra do título não aparecer no corpo texto.... Era mesmo intrigante, porque havia só um nome próprio e aquilo, conforme o dicionário, designava a concha dum molusco. E seguiram-se outros raios de curiosidade, o nome da autora, a narração iniciada dum ângulo pessoal, o fascínio ganho em cada palavra esquisita que podia envolver um símbolo escondido, o universo apenas esboçado.
Agora, depois da leitura, as correlações começam a surgir: parece que todas as coisas têm um nome com duplo sentido: o da superfície e o do fundo. Enquanto movimento - ele vem do avesso, do fundo para a superfície, como se Sophia quisesse purificar a palavra, de dentro para fora. Sabe-se quem foi Homero, mas teia enreda-se em volta de Búzio, deixando a impressão de que o primeiro representa somente uma estratégia para engodar o leitor contemplativo.
A presença do poeta grego influenciou profundamente a obra da Sophia, faz-se sentir a sua presença a todo o passo e em todo o seu percurso literário. Repare-se naquela balança metafórica, (embora expressa explicitamente na descrição física do Búzio através do qualificativo “baloiçado”), na qual a narradora coloca os dois vultos - num prato o homem da ficcionalidade, no outro o da realidade. E quem é quem? Substituam-se alternativamente, no fundo, brincam, surpreendem. Delete. Aquilo não devia estar escrito. Para quê tantos jogos de palavras, onde haverá ligações? Trata-se simplesmente de um mendigo (que não mendiga) bucólico e de sensações transmitidas pelo mar a um velho e, se calhar, a uma menina muito impressionada com a aparição do segundo. Delete mais uma vez!
Na verdade, Homero é a sombra do Búzio, uma parte integrante dele, porventura o ânimo, a lenda projectada na realidade. Pois, de dentro para fora, a imagem mítica insere-se na figura do homem simples, emprestando-lhe a sua aura fictícia. Através dos olhos da menina, percebemos o vulto hiperbolizado do Búzio e a inserção do seu carácter irreal nos arredores da praia. As imagens visuais predominam a fim de pormenorizar o impacto da emergência do protagonista sobre o universo artístico, assim como sobre o receptor intra e extratextual ( a menina, o leitor, respectivamente).
Podemos considerar o Búzio a interface da realidade, desde que a sua caracterização equivalha à coisificação de Homero. O segundo é evocado através do primeiro: as suas aparências físicas remetem ao poeta grego: “A sua barba branca e ondulada”, “ os seus olhos [...] ora eram azuis, ora conzentos”, “na mão esquerda trazia um grande pau”, “O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento”. Ao contrário, a sua atitude remete à impressão do aparecimento dum menestrel medieval ou de um Orpheu que canta e encanta; não pede nada, mas oferece tudo, recebendo só “bocados secos de pão e tostões”.
O Búzio é representado, num certo momento, em contraste com os pedintes comuns retratados na decadência, nem sequer comovente, mas repulsiva, enquanto ele, impressionante e digno, “alto e direito”, “não tinha nenhuma ferida”, pertencente à natureza, tem um efeito completamente diferente sobre os outros.
A narradora enquadra esta personagem na natureza: “A terra era a sua mãe e sua mulher”, estabelecendo uma relação mais do que íntima, uma correspondência animista: Búzio empresta dela as feições “ a sua barba [...] era igual a uma onda de espuma”, “os seus olhos, como o próprio mar”, “julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo”, o ritmo, paradoxalmente, quase estagnante, arcaico é definido pelo advérbio reiterado “demoradamente” e pelo baloiço do seu corpo, dos seus gestos “desprendia o saco do pau, desatava os cordões, abria o saco [...]”. Ademais, esta incorporação, esta fusão justifica-se explicitamente no texto: “Nele parecia abolida a barreia que separa o homem da natureza”. Iria ainda longe e diria que esta “barreia abolida” podia simbolizar aquela entre a ficcionalidade e a realidade, entre a sombra persistente subtilmente de Homero e o vulto do Búzio.
No meu entender, a imagem do Búzio constrói-se no percurso textual, adquirindo sempre novas significaçöes, como se nele existisse uma dicotomia, uma sobreposição de Homero/ poeta/ ficção/ mito/ essência aplicada ao Búzio/ mendigo/ veracidade/ aparência. O resultado deslumbra: todas as forças naturais concorrem para o retrato: “O sol pousava nas suas mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus ombros”, como se quisesse anunciar um momento culminante.
O Búzio – como as conchas encontradas tanto no mar, como na terra – é habitante de dois mundos ( o lendário e o real-no sentido intratextual), é o sábio acompanhado pelos seus objectos mágicos e simbólicos: as conchas, o pau, o saco, o cão, o feiticeiro que perpetuará os mitos na realidade. Este próprio feiticeiro adquire uma índole esquisita: conversa com a natureza, nomeia as coisas num diálogo imperceptível, delirante “que parecia recortar e desenhar todas as coisas”. Desencadeia-se, “falava com o mar” junto com as forças da natureza “uma levíssima névoa subia do mar”, “o vento rápido”, o sol.
Para além disso, ele está num processo de criação, forja palavras, enfeitiça-as, canta-as, molda-as, tem um poder divino como se fosse o próprio Criador dizendo: “Primeiro foi a Palavra”. O Búzio é o Poeta que anima toda as coisas através das palavras “quase visíveis,[..], brilhantes”, que as isenta de todas as impurezas, conferindo-lhes a essência: “vento, frescura de águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas”.
Escolhi comentar este texto e não me arrependi em nenhum momento! Esta escrita cheia e que cheira a poesia, a simplidade tão complexa ( se me é permitido) da vida, do mundo, a regresso subtil às coisas fundamentais...tudo me atraiu na teia do universo artístico criado por Sophia.
Teodora–Elena Chiţă
2º Ano
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
“HOMERO” – ou O Baptismo das Coisas
Publicada por
patrícia
à(s)
11:07
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